segunda-feira, novembro 24, 2014

*Sistema político brasileiro é porta de entrada para a corrupção, diz cientista político português

O cientista político português João Pereira Coutinho define o sistema de coalizão brasileiro, que une partidos com ideologias tão diferentes, como um convite à corrupção. É um atraso, segundo ele, a Câmara dos Deputados ser representada por cerca de 30 partidos, o que não acontece em democracias avançadas, onde predomina o bipartidarismo.
Nascido na cidade de Porto, Coutinho compara a elevada dívida pública brasileira com a portuguesa, que levou a economia dos patrícios à beira do colapso. “O verdadeiro sábio é aquele que aprende com os erros... dos outros”, diz. Na opinião dele, o Brasil não compreendeu que a combinação entre descontrole dos gastos e baixo crescimento é a receita para o desastre.
Autor do livro “As ideias conservadoras”, Coutinho defende o combate à pobreza, mas alerta: o Estado não é babá dos cidadãos. Declarado conservador, João Coutinho é jornalista, escritor, historiador e doutor em ciência política. Dá aula na Universidade Católica Portuguesa. E é comentador do Correio da Manhã.
Por que um livro sobre as ideias conservadoras?
João - O conservadorismo é apenas uma ideologia moderna, como o liberalismo ou o socialismo, e o objetivo do livro era apresentar essa ideologia, sem proselitismos, para dissipar caricaturas ou equívocos.
Há espaço na política para conservadores? O que seria um conservador?
João - Qualquer sociedade democrática e pluralista tem que ter espaço para vozes dissonantes. Só ditaduras procuram silenciar o adversário. Um conservador, por exemplo, é alguém que entende a política como um serviço prestado ao público e não como uma forma de nos servirmos dos recursos públicos. É alguém que entende seriamente a importância de reformar - a economia, a legislação trabalhista, a fiscalização -, de forma a tornar o seu país mais competitivo e, consequentemente, mais justo. Porque só pode existir justiça social se existe criação sustentada de riqueza.
Como o conservadorismo trata questões como união gay e aborto?
João - Depende. Existem conservadorismos, no plural, e cada um pode tratar desses assuntos de maneira diversa. Se perguntarem a um conservador de tendência mais libertária o que ele pensa a respeito dessas matérias, ele dirá que a união gay e o aborto são assuntos individuais, onde o Estado não mete a pata. Um neoconservador, pelo contrário, dirá que a defesa dos valores morais é tão ou mais importante do que quaisquer outros porque são os valores morais que sustentam uma sociedade.
Na recente eleição brasileira, houve um intenso debate sobre direita e esquerda, liberais e socialistas. Por que os políticos com pensamento de livre mercado são demonizados, são vistos como ditadores?
João - Porque o mercado assusta mentalidades concentracionárias. O que é o mercado, afinal? É um espaço de livre troca, não apenas de produtos ou capitais - mas também de ideias. Por isso as ditaduras tendem a abolir o livre mercado. Porque elas sabem que, circulando ideias, isso representa um perigo para a manutenção do poder autocrático.
Como o senhor vê o Congresso brasileiro, representado por cerca de 30 partidos políticos?
João - Como um sintoma de arcaísmo. Já escrevi aplaudindo um texto de Sérgio Dávila onde ele defendia, com lucidez e coragem, o bipartidarismo. Basta olhar para as democracias mais avançadas do mundo e contar o número de partidos com representação parlamentar. Não encontra nenhum caso com 30 partidos.
Como o senhor encara o sistema de coalizão no presidencialismo, que geralmente une partidos tão diferentes ideologicamente?
João - Como um convite para o atavismo reformista e para a corrupção.
Como funciona em democracias mais maduras?
João - Em democracias maduras, há partidos que ganham eleições; que podem eventualmente fazer coligações com um ou dois parceiros menores de forma a constituir governo; e que no fim do mandato são julgados por isso. A tradição “gelatinosa” do Brasil é uma originalidade – e um desastre.
Portugal paga um alto preço atualmente por causa da elevada dívida pública. O mesmo começa a acontecer aqui. Que lições o Brasil deveria aprender com os portugueses?
João - Alguém dizia que o verdadeiro sábio é aquele que aprende com os erros… dos outros. O Brasil deveria aprender com Portugal que a combinação entre descontrole dos gastos públicos e crescimento econômico anêmico costuma ser receita para o desastre.
No mundo, a população depende tanto de programas de transferência de renda como ocorre aqui no Brasil?
João - Desconfio que não seja possível comparar a pobreza europeia à pobreza brasileira. Agora, o modelo de bem-estar social europeu, que emergiu depois da Segunda Guerra Mundial, está a atravessar uma crise de existência por vários motivos. A Europa não cresce como na segunda metade do século XX. A população está a envelhecer e os encargos sociais são enormes. Os governos foram alargando os benefícios sociais quase até ao delírio. São lições importantes para o Brasil. É necessário evitar extremos de pobreza e algumas conquistas sociais são preciosas. Mas o Estado não pode ser a “babysitter” dos seus cidadãos em todos os aspectos da existência.
Como o senhor encara a crise econômica que afeta os países de primeiro mundo?
João - Não estou particularmente otimista em relação à Europa. Mesmo o motor do crescimento europeu, a Alemanha, está a sentir nos ossos que a crise dos outros representa uma ameaça. Mas a culpa da crise não está na Alemanha; nem sequer, em rigor, no Euro e na sua defeituosa construção. Está na irresponsabilidade de vários governos que acreditaram que uma moeda forte os protegia de crescimentos fracos, facilmente sustentados por endividamento.
O brasileiro foi às ruas em meados do ano passado manifestar contra os péssimos serviços públicos. O europeu tem mais hábito de protestar. Como o senhor vê essas manifestações?

João - Não há a mesma tradição de protestos. Muitos europeus ficaram espantados com as manifestações brasileiras, mas é óbvio que as manifestações fazem parte do DNA da democracia brasileira. De resto, é positivo que a classe média queira mais e melhor – na saúde, na luta contra a corrupção, no ensino. O que não é positivo é esperar essas melhorias do mesmo poder político que levou o Brasil ao impasse em que se encontra agora.

*Publicado na edição 190, do Jornal do Comércio, que circulou quinta-feira passada

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